Estamos nos encontrando em um momento extraordinário, um momento que, de fato, é único na história da humanidade, um momento ao mesmo tempo sinistro como presságio e brilhante pela esperança de um futuro melhor. A Internacional Progressista tem um papel crucial a desempenhar na determinação de qual caminho a história seguirá.
Estamos nos encontrando em um momento de confluência de crises da mais alta gravidade, com o destino da experiência humana literalmente em jogo. Estas questões devem atingir o ponto crítico nas próximas semanas para os dois maiores impérios da era moderna.
A Grã-Bretanha em declínio declarando publicamente que rejeita o direito internacional, está à beira de um rompimento abrupto com a Europa, se tornando ainda mais um satélite dos Estados Unidos do que já é. Mas é claro que o mais importante para o futuro é o que acontece na hegemonia global, diminuída por causa do trem desgovernado de Trump, mas que conserva um poder esmagador e vantagens incomparáveis. O seu destino, em com ele o destino do mundo, provavelmente será conhecido em novembro.
Não surpreende que o resto do mundo esteja preocupado, se não chocado. Seria difícil encontrar um comentarista mais sóbrio e respeitado do que Martin Wolf, do Financial Times de Londres. Ele escreveu que o Ocidente está enfrentando uma séria crise e, se Trump for reeleito, “isso será o fim”. Palavras fortes, e ele nem se refere às grandes crises que a humanidade está enfrentando.
Wolf se refere à ordem global, assunto importante mas não comparável às crises que ameaçam trazer consequências muito mais sérias, as crises que estão empurrando os ponteiros do famoso Relógio do Apocalipse na direção da meia-noite - na direção do extermínio.
O conceito de Wolf sobre o “fim” não é novo no discurso público. Temos vivido sob sua sombra por 75 anos, desde que aprendemos, em um inesquecível dia de agosto, que a inteligência humana inventou os meios que logo levariam à capacidade para a destruição final. Aquilo foi absolutamente devastador, mas havia mais. Na época não se entendia que a humanidade estava entrando em uma nova era geológica, o Antropoceno, em que as atividades humanas estão depredando o meio ambiente de um modo que agora também se aproxima da destruição total.
Os ponteiros do Relógio do Apocalipse foram posicionados logo depois que as bombas atômicas foram usadas no paroxismo de um massacre desnecessário. Os ponteiros vêm se movendo desde então, conforme a evolução das circunstâncias globais. A cada ano que Trump está no poder os ponteiros avançam na direção da meia-noite. Há dois anos eles ficaram mais próximo do que jamais estiveram. Em janeiro último os analistas abandonaram os minutos e passaram para os segundos: 100 segundos para a meia-noite. Eles citaram as mesmas crises de antes: as ameaças crescentes de guerra nuclear, as catástrofes ambientais e a deterioração da democracia.
A princípio esta última pode parecer até fora de lugar, mas não está. A democracia em declínio é um membro perfeito do trio sombrio. A única esperança de escapar das duas ameaças de destruição total é com uma democracia forte, em que cidadãos preocupados e informados se engagem completamente na deliberação, no planejamento de políticas e na ação direta.
Isto foi em janeiro último. Desde então, o presidente Trump ampliou as três ameaças, um feito nada desprezível. Ele continua a destruir o regime de controle de armas que oferecia alguma proteção contra a ameaça de guerra nuclear, enquanto buscou o desenvolvimento de armas novas e mais perigosas, para o deleite da indústria bélica. Em seu compromisso de destruir o meio ambiente que sustenta a vida, Trump abriu vastas áreas para perfuração, inclusive a última grande reserva natural. Enquanto isso, os seus minions desmantelam sistematicamente o sistema regulatório que, de alguma forma, mitiga os impactos destrutivos do uso de combustíveis fósseis e protege a população dos produtos químicos tóxicos e da poluição, uma maldição que é duplamente assassina agora, durante uma epidemia respiratória.
Trump também levou à frente a sua campanha para enfraquecer a democracia. Por lei, as indicações presidenciais estão sujeitas à confirmação do Senado. Trump evita essa inconveniência deixando as vagas em aberto e ocupando-as com “indicações temporárias” que respondem às suas vontades - e, quando não o fazem de forma suficientemente fiel ao seu senhor, são demitidos. Ele expurgou o poder executivo de qualquer voz independente. Apenas os bajuladores permanecem. Há muito tempo o Congresso criou a figura do Inspetor Geral para monitorar a performance do poder executivo. Eles começaram a examinar o lamaçal de corrupção que Trump criou em Washington. Ele resolveu isso rapidamente demitindo-os. Não houve nem um pio dos republicanos no Senado, completamente submissos a Trump, desprovidos de qualquer integridade e aterrorizados pela base popular que Trump construiu.
Esse ataque à democracia é só o começo. O último passo de Trump é avisar que pode não deixar o cargo, se não ficar satisfeito com o resultado das eleições de novembro. A ameaça é levada muito a sério nas esferas mais altas do poder. Para mencionar apenas alguns exemplos, dois comandantes militares aposentados, altamente respeitados, divulgaram uma carta aberta ao chefe do Estado Maior das Forças Armadas, General Milley, reforçando a sua responsabilidade constitucional de enviar o exército para retirar à força um “presidente ilegal” que se recuse a deixar o cargo após uma derrota eleitoral e convoque em sua defesa grupos paramilitares como os que enviou a Portland, no Oregon, para aterrorizar a população mesmo sob forte objeção de autoridades eleitas.
Muitas figuras relevantes consideram este aviso como realista, dentre elas o importante Projeto de Transição Íntegra, que acaba de divulgar os resultados das “simulações de guerra” que vem conduzindo sobre os possíveis resultados da eleição de novembro. Os participantes do projeto são “alguns dos mais bem sucedidos republicanos, democratas, servidores públicos, especialistas em mídia, pesquisadores e estrategistas em geral”, como explicou o co-diretor do projeto, e inclui figuras proeminentes dos dois partidos. Em qualquer cenário plausível, fora uma vitória clara de Trump, as simulações levaram a algo como uma guerra civil, em que Trump decide acabar com o “experimento americano”.
Novamente, palavras fortes, nunca antes ditas por pessoas equilibradas do meio político dominante. Apenas o fato de se pensar isso já é suficientemente assustador. E eles não estão sós. Dado o incomparável poderio dos EUA, está em risco muito mais do que o “experimento americano”.
Nunca tinha acontecido algo semelhante na problemática história da democracia parlamentar. Para ficar apenas nos anos mais recentes, Richard Nixon - que não é a pessoa mais agradável na história presidencial - tinha boas razões para acreditar que havia perdido as eleições de 1960 devido a uma manipulação ilegal dos democratas. Ele não contestou os resultados, colocando o bem estar do país à frente da sua ambição pessoal. Albert Gore fez o mesmo em 2000. Hoje não.
Abrir novos caminhos que desprezam o bem estar do país não é suficiente para o megalomaníaco que domina o mundo. Trump também anunciou que pode novamente ignorar a Constituição e “negociar” um terceiro mandato se decidir que tem esse direito.
Alguns preferem rir de tudo isso como se fosse a brincadeira de um palhaço. Como mostra a história, isto implica riscos.
A sobrevivência da liberdade não está garantida por “obstáculos escritos”, alertou James Madison. As palavras no papel não são suficientes. A liberdade é fundada na expectativa da boa fé e da honestidade recíproca. Isso foi despedaçado por Trump junto com seu cúmplice Mitch McConnell, o líder da maioria no Senado que transformou “a casa legislativa mais importante do mundo”, como ela se autodenomina, em uma brincadeira patética. O Senado de McConnell se recusa até a examinar propostas de lei. Sua preocupação é ser generoso com os ricos e amontoar o judiciário com advogados jovens de extrema direita capazes de manter o projeto reacionário de Trump e McConnell por uma geração, seja lá o que o povo decidir, seja lá o que o mundo precisar para sobreviver.
A desprezível subserviência aos ricos do Partido Republicano de Trump e McConnell é notável até para os padrões neoliberais de exaltação à ganância. Um exemplo foi apresentado pelos especialistas em legislação fiscal, os economistas Emmanuel Saez e Gabriel Zucman. Eles demonstraram que em 2018, após a fraude fiscal que foi o único feito legislativo de Trump e McConnell, “pela primeira vez nos últimos cem anos os bilionários pagaram menos [ impostos] que metalúrgicos, professores e aposentados,” o que apagou “um século de história fiscal”. “Em 2018, pela primeira vez na história moderna dos Estados Unidos, o capital foi menos taxado que o trabalho” - uma vitória impressionante na guerra de classes, denominada “liberdade” pela doutrina hegemônica.
O Relógio do Apocalipse foi ajustado em janeiro passado antes da pandemia ser verdadeiramente compreendida. Cedo ou tarde a humanidade irá se recuperar da pandemia, a um custo terrível. Um custo desnecessário. Vemos isso claramente na experiência dos países que agiram de forma decisiva quando a China informou ao mundo sobre o vírus, em 10 de janeiro. Dentre eles estavam países do leste e do sudeste asiático e da Oceania, com outros seguindo atrás e outros ainda na rabeira com alguns desastres absolutos, notadamente os Estados Unidos, seguido pelo Brasil de Bolsonaro e a Índia de Modi.
Apesar da prevaricação ou da indiferença de certos líderes políticos, no final haverá algum tipo de recuperação da pandemia. No entanto, não vamos nos recuperar do derretimento das calotas polares, do crescimento explosivo dos incêndios no ártico que liberam enormes quantidades de gases do efeito estufa na atmosfera, nem de outros passos no nosso caminho para a catástrofe.
Quando os mais importantes cientistas climáticos nos alertam para “Entrar em pânico agora”, não estão sendo alarmistas. Não há tempo a perder. Poucos estão fazendo o suficiente, e o que é pior, o mundo está amaldiçoado por líderes que não só se recusam a agir como estão acelerando propositalmente a corrida para o desastre. A perversidade na Casa Branca leva a dianteira nestes crimes monstruosos.
Não são apenas os governos. Podemos dizer o mesmo da indústria de combustíveis fósseis, dos grandes bancos que as financiam e de outras indústrias que lucram com ações que colocam a “sobrevivência da humanidade” em sério risco, nas palavras de um memorando interno vazado do maior banco dos EUA.
A humanidade não vai sobreviver a essa perversidade institucional. Os meios para administrar a crise estão disponíveis. Mas não por muito tempo. Uma das primeiras tarefas da Internacional Progressista é assegurar que nós entremos em pânico já - e que reajamos de acordo.
As crises que enfrentamos nesse momento único da história humana são, é claro, internacionais. A catástrofe ambiental, a guerra nuclear e a pandemia não têm fronteiras. De um modo menos transparente, o mesmo vale para os gênios do mal que espreitam a Terra e empurram o ponteiro dos minutos no Relógio do Apocalipse na direção da meia-noite: a deterioração da democracia. A característica internacional dessa praga fica evidente quando examinamos a sua origem.
As circunstâncias variam, mas há certas raízes comuns. Grande parte da crueldade vem do ataque neoliberal à população mundial de 40 anos atrás.
A característica básica deste ataque foi captada nos discursos inaugurais das suas figuras mais conhecidas. Ronald Reagan declarou no discurso de posse que o governo era o problema, e não a solução - significando que as decisões deviam ser retiradas dos governos, que são ao menos parcialmente controlados pelo povo, e entregues ao poder privado, que não responde ao povo e cuja única responsabilidade é enriquecer, como declarou o economista Milton Friedman. A outra foi Margaret Thatcher, que nos ensinou que não há sociedade, apenas um mercado onde as pessoas são jogadas para sobreviver como puderem, sem organizações que lhes permitam se defender da sua devastação.
Involuntariamente, sem dúvida, Thatcher estava parafraseando Marx, que condenou os governantes autocráticos da sua época por transformarem a população em um “saco de batatas” indefeso contra o poder concentrado.
Com admirável consistência, os governos de Reagan e Thatcher agiram de imediato para destruir o movimento sindical, o principal obstáculo ao governo cruel e classista dos donos da economia. Ao fazê-lo, adotaram os princípios fundamentais dos primórdios do neoliberalismo na Viena do entreguerras, onde o fundador e patrono do movimento, Ludwig von Mises, mal conteve a alegria quando o governo protofascista destruiu violentamente a vibrante social democracia austríaca e os desprezíveis sindicatos que estavam interferindo no fortalecimento da economia ao defenderem os direitos dos trabalhadores. Como von Mises explicou em seu clássico neoliberal de 1927, Liberalismo, cinco anos depois de Mussolini iniciou seu brutal governo, “Não se pode negar que o fascismo e movimentos similares que buscam estabelecer ditaduras estão cheios de boas intenções e suas intervenções têm, por enquanto, salvado a civilização européia. O mérito que o fascismo conquistou viverá eternamente na história” - embora ele garantisse que seria provisório. Os camisas negras irão para casa depois de terminar os seus bons serviços.
Os mesmos princípios inspiraram o entusiasmado apoio neoliberal à terrível ditadura de Pinochet. Poucos anos depois eles foram postos em prática na arena global, de outro modo, sob a liderança dos Estados Unidos e do Reino Unido.
As consequências eram previsíveis. Uma delas foi a forte concentração da riqueza simultâneamente à estagnação para a maior parte da população, que se refletiu no campo político com o enfraquecimento da democracia. O impacto nos Estados Unidos mostra claramente o que se pode esperar quando o governo das empresas não é contestado. Depois de quarenta anos, 0,1% da população possui 20% da riqueza, o dobro do que tinha quando Reagan foi eleito. Os ganhos dos executivos-chefes disparou, levando consigo a riqueza geral da administração. Os salários reais para funções operacionais caiu entre os homens. A maioria da população vive para pagar contas, quase sem poupar. As instituições financeiras, amplamente predatórias, cresceram exponencialmente. Tem havido diversas falências, cada vez maiores, cujos responsáveis se safam às custas dos que pagam impostos,, embora este seja o menor dos subsídios estatais implícitos que recebem. Os “mercados livres” levaram à monopolização, com redução da competição e da inovação, quando os mais fortes engoliram os mais fracos. A globalização neoliberal desindustrializou o país, conforme previsto nos acordos de direitos dos investidores, erroneamente rotulados como “acordos de livre comércio”. Ao abraçar a doutrina neoliberal, segundo a qual “imposto é roubo”, Reagan abriu a porta para os paraísos fiscais e as empresas de fachada - antes banidas e coibidas pela correta aplicação da lei. Isso levou imediatamente à criação de uma grande indústria de evasão fiscal para acelerar o roubo massivo da população em geral perpetrado pelos ultrarricos e as corporações. Não foi pouca coisa. O volume é estimado em dezenas de trilhões de dólares.
Isso prossegue com o arraigamento da doutrina neoliberal.
Quando o plano começava a tomar forma, em 1978, o presidente do sindicato United Auto Workers, Doug Fraser, se demitiu de um comitê administrativo trabalhista criado pela administração Carter, e expressou o seu espanto porque os líderes patronais “resolveram iniciar uma guerra de classes unilateral no país - guerra contra os trabalhadores, os desempregados, os pobres, as minorias, os muito jovens e os muito idosos, e até mesmo contra muitos da classe média da nossa sociedade”, e porque “quebraram e descartaram o frágil acordo não escrito que existira durante o período de crescimento e progresso” - o período de colaboração entre as classes no capitalismo regulamentado.
O seu reconhecimento de como o mundo funciona estava um pouco atrasado, na verdade estava atrasado demais para se esquivar da amarga guerra de classes iniciada pelos empresários que pouco depois teriam carta branca de governos condescendentes. Na maior parte do mundo as consequências não foram as esperadas : ódio generalizado, ressentimento, desprezo pelas instituições políticas, enquanto as principais instituições econômicas se ocultam detrás da máquina de propaganda. Tudo isso é território fértil para demagogos que fingem ser o salvador da pátria enquanto te esfaqueiam pelas costas e põem a culpa pelos resultados em bodes expiatórios: imigrantes, negros, a China, quem quer que encaixe nos preconceitos estabelecidos.
Voltando às grandes crises que enfrentamos neste momento histórico, todas são internacionais, e duas internacionais estão se formando para enfrentá-las. Uma começa hoje: a Internacional Progressista. A outra vem se formado sob a liderança de Trump na Casa Branca, a Internacional Reacionária, que inclui os países mais reacionários do mundo.
No hemisfério ocidental, a Internacional Reacionária inclui o Brasil de Bolsonaro e alguns outros. No Oriente Médio, os principais membros são as ditaduras familiares do Golfo, a ditadura de al-Sisi no Egito, talvez a mais dura na história amarga do país, e Israel, que há muito tempo descartou sua origem social-democrata e se virou na direção da direita, um efeito previsível da ocupação brutal e prolongada. Os acordos atuais entre Israel e as ditaduras árabes, que formalizam relações tácitas, são um passo significativo para consolidar a filial da Internacional Reacionária no Oriente Médio. Os palestinos foram chutados na cara, um destino coerente para quem não detém poder e não rasteja aos pés dos senhores naturais.
No Oriente, a Índia é uma candidata natural, com o primeiro ministro Modi destruindo a democracia secular indiana e transformando o país em um Estado hindu nacionalista e racista, enquanto esmaga a Caxemira. O contingente europeu inclui a “democracia iliberal” de Orban na Hungria e elementos semelhantes em outras partes. Esta Internacional também tem o respaldo poderoso das instituições financeiras globais.
As duas internacionais congregam boa parte do mundo, uma no nível dos Estados, a outra no nível dos movimentos populares. Cada uma é uma representante importante de forças sociais muito mais amplas com visões de mundo fortemente antagônicas, que devem surgir da atual pandemia. Uma está trabalhando sem descanso para construir uma versão ainda pior do sistema neoliberal global - do qual já se beneficiou imensamente - com uma vigilância e um controle mais intensos. A outra olha adiante, para um mundo de justiça e paz, onde a energia e os recursos servirão às necessidades humanas, e não às exigências de uma pequena minoria. É um tipo de luta de classes em escala global, com muitas facetas e interações complexas.
Não é exagero dizer que o destino da experiência humana depende do resultado desta luta.